A sepultura escavada na rocha da Ribeira da Venda


"Os últimos séculos da Alta Idade Média e o período de transição que se lhe seguiu foram dominados pela presença de sepulturas abertas na rocha, aproveitando afloramentos rochosos para a implantação dos cemitérios ou de monumentos isolados. É certo que a origem desta moda de enterramento parece remontar a época anterior ao processo da Reconquista cristã e que os exemplos mais tardios o ultrapassam. É igualmente certo que durante o próprio período da Reconquista as sepulturas escavadas na rocha se viram confrontadas com a presença de outras formas de enterramento, nomeadamente com sepulturas constituídas por elementos avulsos e com sarcófagos monolíticos, na sua maioria não-antropomórficos."

Mário Jorge Barroca [VER MAIS AQUI], provavelmente o mais autorizado arqueólogo sobre o tema das sepulturas escavadas na rocha, contextualiza assim este 'fenómeno' que ocorre de norte a sul de Portugal e com particular incidência em regiões com bons afloramentos graníticos.

Este sepultura isolada junto à Ribeira da Venda, na freguesia da Comenda, concelho de Gavião, é um bom exemplo de moimentos construídos em destacados afloramentos graníticos. Neste caso em particular, foi construída num dos lados desse afloramento, com o sepulcro a apresentar um desnível entre a cabeceira e os pés, acompanhando a estrutura geológica.

Estas sepulturas terão evoluído das formas não antropomórficas para as antropomórficas, podendo inferir-se que as mais antigas serão as primeiras, mas fechando sempre a porta a pareceres absolutos e abstraindo desde logo considerações poético-filosóficas que envolvam histórias de mouras encantadas.

Estamos aqui perante uma sepultura trapezoidal (as ovaladas serão hipoteticamente as mais antigas), sem qualquer contorno da zona da cabeça e dos ombros.

"As dimensões do sepulcro deviam exceder em cerca de 10-20 cm a estatura do morto, o que embora dificulte os cálculos para os estudos de antropologia física não invalida que se obtenham alguns valores aproximados", refere ainda Mário Barroca.



Esta sepultura tem uma orientação, digamos, pouco 'canónica' pois encontra-se orientada no sentido Norte (cabeceira)-Sul (pés). A orientação mais recorrente é no sentido Oeste-Este, ou seja, tal como acontece com as cabeceiras dos templos cristãos, sob a orientação de Jerusalém.

A sepultura da Ribeira da Venda mede 1,90 metros de comprimento e 60 centímetros de largura na cabeceira e 40 centímetros nos pés, tendo uma profundidade de 40 centímetros. O encaixe da tampa encontra-se perfeitamente definido mas desta, como sempre acontece, não ficaram vestígios. A cerca de 100 metros desta sepultura foram identificados fragmentos de dolia romanos (grandes potes de armazenamentos de cerais e outros produtos), o que pode indiciar a existência de um povoamento ou de uma zona de descanso entre caminhos dessa altura.

"O corpo ia a enterrar amortalhado no sudário, um pano geralmente de linho, cuja qualidade dependia do poder económico do defunto ou da sua família. Ao que parece, a inumação vestida não era comum nas sepulturas desta tipologia", releva Mária Barroca.

Normalmente, os defuntos não se faziam acompanhar de qualquer espólio, ao contrário do que acontecia nos rituais de cremação ou inumação dos romanos, onde era normal depositar-se um 'serviço de mesa' ou objetos de uso comum, como frascos de perfume, de que resulta sempre a recolha de muito espólio especialmente nos cemitérios romanos de incineração (como ocorreu aqui perto, em Outeiro do Mouro, em Fronteira).

A colocação do corpo na sepultura fazia-se, normalmente, na posição de decubito supino ou dorsal, isto é, apoiado nas costas, com o ventre voltado para cima e a cabeça na vertical, olhando o céu.

Há necrópoles de sepulturas escavadas na rocha com várias sepulturas que aproveitam normalmente todo o afloramento rochoso disponível e podemos encontrar também sepulturas que não foram terminadas. Os sepulcros destinados a crianças também são comuns. A abertura de uma sepulcro deste tipo exigiria três dias de trabalho e o serviço de especialistas.

O Atlas do Património Arqueológico Português identifica mais uma sepultura perto da Comenda, também trapezoidal, concretamente no Vale da Feiteira (a sul da pvoação), num afloramento alto no interior da povoação, esta com dois metros de comprimento, perto de um local onde surgiram ímbrices (telhas) romanos e cerâmica fina alaranjada. Tentaremos lá chegar em breve.