Esta semana, num dia de chuva e algum frio, sentamo-nos à mesa da cozinha da casa de Manuel e Laurinda Chambel. Cheirava a laranjas acabadas de colher.
Uma casa construída no início dos anos 80 no antigo Estacal, isto é, na Dona Delfina Pequito Rebelo, a Rua Grande. Uma casa onde paro sempre que por ali passeio.
Este jardim de ninfas desnudas bem merece que lavemos assim os olhos. Uma coleção que Manuel Chambel foi fazendo crescer e que é uma homenagem, como ele diz, "às minhas meninas", isto é, as cabeleireiras que o fizeram vencer na vida quando passou a tratar da contabilidade e de outros assuntos das profissionais deste ofício. Mas já iremos a essa parte da história.
"No meio das mulheres bonitas sempre com a mesma mulher"
Fica anotado um dos lemas que tem pautado a vida de Manuel Chambel, antes que qualquer pensamento mais atrevido entre neste assunto.
Manuel Chambel nasceu no dia 18 de janeiro de 1941, na Atalaia, onde vivia, no Alto do Pina, com os seus pais, Joaquim Chambel e Guilhermina Marques. É um dos sete filhos deste casal.
O pai era negociante de gado e agricultor. Na Atalaia foi cumprida a 4.ª classe sob as lições do professor Manuel Alves Gravelho (recentemente falecido, com 103 anos). "Éramos mais de vinte jovens", recorda esses momentos na escola que funcionava numa casa perto do hoje Clube Atlético e Recreativo da Atalaia.
"O senhor Pinto Abreu, dono de grandes propriedades na Atalaia, queria que eu continuasse os estudos no colégio de Santo Tirso e pagava as propinas mas não havia dinheiro para o resto", conta-nos. "A vida era muito dura", acrescenta.
Por isso, aos dez anos o Manuel já estava a trabalhar na agricultura. Sempre com os irmãos Pinto Abreu (Fernando e António) atentos. O nosso entrevistado não o quis dizer mas foi fácil perceber que já na altura o jovem mostrava qualidades acima da média. "Fui sempre reguila", é tudo o que diz sobre o assunto e, sim, a modéstia fica-lhe bem neste tempo em que qualquer malacueco se põe em bicos de pés a mostrar o que nunca foi.
A Atalaia na altura fervilhava de vida, com os campos cultivados de olival, feijão e milho (as culturas principais), para além de feijão, trigo e tudo o que uma horta pode dar. "Não havia muito dinheiro mas nunca nos faltou comida na mesa", precisa.
"Trabalhava para os Pinto Abreu mas sempre tive liberdade para fazer outros trabalhos", diz-nos, e é fácil de acreditar sobretudo quando chegarmos ao fim desta história e percebermos como o nosso protagonista subiu a corda da vida.
"Também ajudou o facto de a minha irmã Maria Eugénia ser a governanta dos Pinto Abreu", apressa-se a informar, assim se confirmando que Manuel não é homem de esconder cartas na manga.
No lagar que hoje é da Túlia, um dos muitos da Atalaia, perdeu Manuel Chambel um dedo. Nem isso o fez esmorecer.
Em 1962 estava em Timor e assim se explica a foto acima. Tinha 21 anos e fizera a sua capacitação militar em Elvas, passando depois por Abrantes. Era 1.º cabo quando zarpou rumo a Timor, de barco, via canal do Suez. A viagem marítima demorou 70 dias e esteve longe de ser um cruzeiro. "Passei maus bocados com o enjoo..."
"Adorei Timor e fiz ali muitos amigos"
Quando chegou a Díli, Manuel Chambel teve como missão dar instrução, como diz, "aos nativos". Passou também "pelas montanhas" e a pressão da guerra, confessa, nunca foi muita. "Os indonésios às vezes passavam a fronteira mas não muito mais do que isso", afirma.
Houve tempo, numa comissão de quase 4 anos, também para tomar conta da messe dos oficiais em Díli, onde ganhou um louvor e foi muito elogiado por dois capitães que eram de Nisa. Por isso, regressou com recomendações para entrar na Guarda Fiscal. Concorreu e ficou bem classificado mas não entrou. Nem por isso esmoreceu.
É então que volta a casa precisamente na altura da festa da Comenda. Era setembro certamente.
A festa ainda se fazia no Largo da Arvorinha e não faltavam caras lindas. Andava por lá a mulher comendense da vida do homem que atravessava o Tejo de batel para ir namorar ao Outeiro. Mas já lá iremos à história de amor que nunca pode faltar numa boa história.
Já com tropa feita e com uma juventude madura, Manuel Chambel decide voltar à escola. Porque queria ser advogado. Ingressa na escola do doutor Mário e da dona Lurdes depois de ajudar na Barraca do Chá da festa, o sítio "que era para os ricos". Passa a viver numa espécie de república, onde hoje é a casa do Gil Monteiro e da Maria Adelina e vai pondo o olho em Laurinda. "Havia outras candidatas", desabafa, não sem antes lançar um olhar a Laurinda.
A sua futura esposa trabalhava na IFAL, a fábrica dos tacos. O namoro, garante, fazia-se à janela e o caminho para o Outeiro já estava perdido. São quase quatro anos de namoro e o casamento tem de ser apressado pois um irmão de Manuel é mobilizado para a Guiné.
Para a gente da Atalaia é preciso alugar uma camioneta da empresa "Setubalense" para o grande momento. O nó é dado na igreja paroquial da Comenda e o copo de água decorre na Taberna do Ti Albino (que era irmão da mãe de Laurinda, filha de Isabel e de João António Jorge), precisamente onde mora hoje quem escreve estas linhas.
É o dia 30 de outubro de 1966.
O casal ficou a morar na antiga república junto ao hoje jardim Manuel de Jesus Duarte. Mas por pouco tempo. Surge a oportunidade de Manuel Chambel ingressar na Carris, em Lisboa. Onde esteve apenas dois meses. "Não gostava, era como a tropa...", explica a decisão.
Através de um primo, surge a possibilidade de trabalhar para o Grémio dos Cabeleireiros. Cobrando quotas. "Não conhecia Lisboa mas depressa descobri que havia ali um filão", destaca quem começou também a tratar da contabilidade e de outras papeladas de cabeleireiros, barbeiros, manicures e esteticistas. Laurinda trabalhava numa papelaria e também deixa o emprego para que a nova empresa cresça bem. A compra de uma máquina de escrever, na altura, foi investimento que teve retorno.
A "Chambel Contabilidade" tem hoje nove pessoas nos seus quadros e quase todos eles foram recrutados no concelho de Manuel. "Está lá um rapaz da Comenda desde os 16 anos e hoje tem 59...", conta sobre a empresa hoje nas mãos da filha e do genro.
Às clientes, Manuel Chambel chama "as minhas meninas" e sente-se o carinho que tem por quem o ajudou a subir na vida, percorrendo quase todo o país (exceto os distritos do Porto e de Braga), numa fase intermédia do seu percurso já na fiscalização de cabeleireiros e depois também na distribuição de produtos, mas sempre com a firma de contabilidade de motores ligados. Um dois em um.
"Tive mais de 400 clientes", diz com orgulho. E é aqui que regressamos à mesa da cozinha da casa de Manuel e Laurinda e ao cheiro a laranjas acabadas de colher.
Amanhã contaremos o resto da história.