Chamiço, a aldeia abandonada que tem uma história ainda para contar

 


O Chamiço, também conhecido por Monte Chamiço, noutras eras Samisso ou Chamisso, é uma aldeia abandonada do concelho do Crato, com uma forte ligação ao Monte da Pedra. Aliás, fica mesmo entre o Monte da Pedra e o Vale do Peso, quase equidistante destas duas aldeias do norte alentejano.


Fomos lá este domingo, 29 de janeiro de 2023, com o senhor João José Miranda, natural do Monte da Pedra e proprietário do nosso café comendense que dá pelo nome de 'Choupinho'. Nascido em 1960, o senhor Miranda, um homem de trabalho, conheceu este lugar quando ele já estava em ruína "mais para além do tempo dos meu avós".

De pé permanecem muros, algumas paredes de antigas habitações e uma bonita ponte junto a um antigo moinho. Certo é que sob a igreja e à sua volta estará ainda o antigo cemitério pois a aldeia esvaziou-se de povo antes da lei, de meados do século XIX, que determinou a interdição de enterramentos nos templos ou em seu redor - a tal lei que deu origem à revolta minhota da Maria da Fonte Arcada.


O Chamiço foi uma aldeia que teve, ao que tudo indica, uma longa vida e nos mapas do início do século XVIII ainda surge referenciado. Neste, por exemplo, a Comenda não vem referida, ao contrário do Chamiço e do Sourinho. Deste último conta-se que foi abandonado e que as suas gentes fizeram o Monte da Pedra. Se sim ou não e porquê, o melhor não será especular. Certo é que nas memórias paroquiais do último quartel do século XVIII o Monte da Pedra já surge referenciado como paróquia. O respetivo pároco menciona que o Monte da Pedra era a aldeia da antiga povoação do Sourinho (que manteve igreja até 1634). Mas no Monte da Pedra conta-se que foi a gente do Chamiço que para ali se mudou. Ou se calhar, as do Chamiço e as do Sourinho. Ok, já sei que pequei e...especulei. Perdão!


De igrejas falando, hoje no Chamiço há uma  igreja que permanece de pé e que está bem tratada. É a igreja hoje de Santo Isidro, centro de uma festa que todos os anos, em maio, junta muita gente vinda sobretudo do Monte da Pedra e do Vale do Peso, com direito a procissão e arraial. O santo está, segundo José João Miranda, à guarda na igreja do Monte da Pedra.

Quanto às gentes que aqui viviam - o Domingos Vaz a Catarina Pereira, a Maria Domingos ou Rosa Balbino que surgem referidos nos registos de batismos e casamentos que se produzem até ao início da terceira década do século XIX - já deste lugar tinham desaparecido algures na segundo metade de oitocentos. Ou seja, quando os avós de José Miranda nasceram já provavelmente a aldeia do Chamiço estaria desabitada.


Em 1759, ditam as
memórias paroquiais, esta aldeia pertencia à província do Alentejo e ao Priorado do Crato, com a sua igreja fora do povo mas situada próxima das casas. O seu orago era São Sebastião. O centeio era o cereal mais colhido e não havia dia determinado para romagem, Ali existiam 25 fogos e 81 pessoas. Hoje, de gentes nada resta, para além da romaria anual, com recinto pronto para receber mais uma romaria.



Curioso. A aldeia esvaziou-se de gentes mas as gentes não esqueceram as tradições. Não me perguntem é como da devoção a São Sebastião se passou a Santo Isidro, também Santo Isidoro, dito o lavrador e nascido em Madrid no dobrar do primeiro para o segundo milénio, com festa celebrada precisamente a 15 de maio.

Iremos voltar ao Chamiço para, com mais tempo, tentar saber mais com a ajuda da arqueologia.



JOSÉ CALDEIRA MARTINS ESCREVEU EM OUTUBRO DE 2020

Não fosse as vezes que minha mãe me respondeu que o meu pai tinha ido tocar na Música para a festa do Chamiço, e eu ia jurar que a aldeia do Chamiço era um mito. Nada mais acontecia que falasse de tal lugar.

           Mas o Chamiço existiu mesmo e tem a sua história contada pelo professor Manuel Subtil, de Vale do Peso, nas edições do jornal de Estremoz "Brados do Alentejo" de 7/10/1934 e de 30/1/1938.


       A meio-caminho entre Vale do Peso e Monte da Pedra, terras do Crato, servida por um caminho hoje pouco cómodo, antiga via romana, a povoação terá atingido o seu auge no século XVI com 36 moradores, que passaram a ser 22 em1760.


        Onerados com impostos, os poucos e pobres habitantes - pastores ou trabalhadores que serviam como criados - conseguem que o Grão Prior do Crato, D. Pedro, irmão do rei D. José , os dispense de pagarem ao padre um moio (828 litros) de trigo, já que tinham de lhe pagar mais três alqueires (13,8 litros) de azeite, 24 almudes ( 16,8 litros) de vinho, um moio de centeio e dois mil réis em dinheiro, anualmente. 

      

 


         Mas, mesmo assim, vão abalando para terras vizinhas onde são menos sobrecarregados.


         Setenta anos depois, no seguimento das Guerras Liberais, extinto o regime de compáscuo que deixava aberto e livre tudo o que não fossem " tapadas" na  proximidade das povoações, sem terrenos baldios para apascentarem os seus gados, mais pastores partem para outras aldeias.


      Em 1850, por já não haver fregueses, as alfaias litúrgicas, a sineta e as imagens da igreja são distribuidas pelos templos em redor. A Vale do Peso cabe a imagem do orago, S. Sebastião, levada em procissão pelos cinco quilómetros que separam as duas localidades. A imagem do santo " pequena, tosca e imperfeita", talvez saída de santeiro local,, passou a ser cultuada, mesmo em Vale do Peso, pelos poucos chamicenses que restavam, tanto na sua festa anual como nas missas de domingo. Aconteceu até que, já entrado o século XX, tendo sidosubstituida por outra mais moderna, de melhor feitura, "certa mulher, devota do santo, ao entregar a esmola que lhe destinava, recomendou ao sacristão:-Olhe que é para o Mártir Santo velho! Não é para o novo".    


          Dessacralizada a igreja, só ficou uma lavradora, de apelido Carita, com os seus criados. Mas não por muito tempo. Porque" uma noite, a hora tardia e silenciosa" entraram-lhe em casa " de roldão, três homens possantes disfarçados com extravagantes máscaras de cabelo, e armados". Depois, a fazer lembrar os quadrilheiros do Zé do Telhado, amarraram os pés e as mãos da dona da casa, estenderam-na sobre o altibanco, deitaram sal num alguidar em cujos bordos afiaram um facalhão, dando assim a impressão que iam matá-la como se fosse um suíno para o fumeiro (...) Como não consumaram o criminoso acto presumível se torna que ela lhes entregasse dinheiro e joias. Mas isso não lhes bastou: deram volta à casa, revolveram e levaram o que puderam e quiseram".


    


         A senhora Carita não mais quis ficar no Chamiço. Abalou de vez para Aldeia da Mata, freguesia vizinha, onde ficou até morrer.


        Diz o Dr. José Leite de Vasconcelos na sua "Etnografia Portuguesa - Volume II", que numa das suas estadas em Tolosa, em 1930, um velho de Gáfete, já com 85 anos, lhe contara que um dos criados da senhora Carita reconheceu os ladrões mas " por decôro, não se declara aqui a terra a que pertenciam.

   Mais escreveu o ilustre investigador sobre o Chamiço:


" Pois que o Chamiço está hoje arruinado, onde nada existe, ou nada existe inteiro, nem se faz nada, e de mais a mais se conta que os habitantes debandaram de lá por medo dos salteadores, o nome tornou-se tipo de mofa entre as povoações vizinhas, Tolosa, Aldeia da Mata, Gáfete, Alpalhão, etc, e o vulgo deu a propósito largas à sua veia engenhosa.


 

  Para intimidar um menino que lhe chora no colo, ralha-lhe assim a 

mãi   _Olha que, se não estás quieto, meto-te na cadeia do Chamiço...


E se ele é já cachopinho, e pretende ir a uma feira, responde-lhe a mãi:

-Tu agora não vais a esta, has-de ir à feira do Chamiço...

No primeiro caso a criança tremia, no segundo sossegava: e a mãi sorria sempre, por falar em vão.

Chegando viajantes a uma terra de pouca importancia, exclamam:

-Estamos na aldeia do Chamiço! 

 - Uma cousa sem valor é como a freguesia do Chamiço.

   Ao perguntar a alguém de onde é, e não querendo essa pessoa responder direito, responde: "sou da freguesia do Chamiço"...

   AS festas mais bonitas ( por ironia) " são as do Chamiço".

   Quando alguém toca mal, por exemplo, um harmónio, ou quando se deseja depreciar uma filarmónica: "é a música do Chamiço"...

   De uma festa a que vai fraca musica, ou a que não vai nenhuma, diz-se que" vai a música do Chamiço"

    Cantiga usual:


                  " A música do Chamiço

                    Foi tocar ao Gavião

                     Todos os musicos entraram

                     Só o do bombo é que não"


     Eu ainda guardo reminiscências de ter ouvido alguns destes remoques à desaparecida aldeia do Chamiço.

      Mas hoje nem a chacota resta.


MANUEL PISCO LOURENÇO COMENTOU:

"Na igreja do chamisso fazia-se a festa do Santo Isidoro, vivi alguns anos no monte do chamisso com meus pais ,Sor José Joaquim e Maria Justina."